O saudoso Adoniran Barbosa já
teria passado a casa dos cem anos no dia 6 de agosto deste ano.
Imortalizado por seu jeito
popular de cantar sobre temas que abordavam o cotidiano sob a ótica do cidadão
popular excluído da sala de aula, colocando no centro da cena um narrador com as
marcas linguísticas fora da modalidade padrão, isto é, da norma “culta”, como
insistem os gramáticos ortodoxos.
Adoniran Barbosa já foi mais de
uma vez abordado em provas de vestibulares em que as bancas examinadoras
apresentam um texto seu em formato original e, em seguida, exige que os
candidatos façam uma análise do texto e uma correção gramatical, empregando os
conhecimentos adquiridos ao longo dos anos escolares.
Um vestibular paulista, certa
vez, apresentou a canção “Saudosa maloca” como uma “manifestação artística em
que ocorre sobreposição do falar popular sobre a norma culta”. Solicitou aos
candidatos que explicassem o que ocorria sistematicamente com o “-r” final e o
“-lh-” medial das palavras da canção.
Um candidato deveria, então, dizer
que o “-r” final era eliminado na letra da canção e que o “-lh-” medial era
substituído por “i”. Assim, a palavra “cobertô”, escrita na letra de Adoniran,
deveria, após a “correção” do candidato, ser escrita “cobertor” . Da mesma maneira, a palavra
“paia”, deveria, na resposta da prova do vestibulando, ser grafada “palha” após
sua intervenção.
Desse modo, os membros da banca
examinadora da prova certamente acharam que cumpriram seus papéis de educadores
e avaliadores das capacidades intelectuais dos ingressantes do ensino
“superior”, seja desintegrando uma canção tão marcante como essa, seja
intimidando outras manifestações artísticas, como as composições de Cartola,
Angelino Oliveira, Raul Torres, por exemplo, que também ressaltam a fala
popular.
Há obras intocáveis por sua
beleza, que merecem total respeito do público geral e também da academia. Não
há como desprezar “Trem das onze”, “Samba do Arnesto”, “Tiro ao Álvaro”, muito
menos “Saudosa maloca”, ou mesmo “Bom dia tristeza”, parceria de Adoniran com
Vinícius de Moraes, em que este escreve uma letra também com marcas coloquiais
para que aquele acrescente harmonia e melodia.
Adoniran Barbosa, filho de
imigrantes italianos, nasceu em Valinhos e mudou-se para São Paulo, terra de
sambistas da pesada, embora haja compositor que considere “Sampa” um “túmulo do
samba”. Fez muito sucesso com suas letras marcantes porque trazia em seus
versos a luta do sobrevivente que, embora viva as dificuldades do cotidiano,
ainda vê poesia no mundo, seja nordestino, seja sulista, caiçara ou caipira, isto
é, o brasileiro que usa a língua como um veículo de comunicação, e não como
moeda por meio da qual pode ser aprovado em concurso e obter títulos e cargos
em nossa sociedade marcada por tanta pluralidade cultural, onde só se admite a
língua dos “cultos”.
- Viva Adoniran Barbosa!
(Fabius)
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