quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Gastronomia e fusões étnicas no Brasil


Em mais um ano de inexpressão de medalhas em Olimpíada, os brasileiros ainda têm um certo orgulho ao fazer menção à força do futebol que aqui se joga e que para o mundo se mostra nas Copas.  Quando se fala em música brasileira fora do país, também não há dúvida dos ricos e variados ritmos e estilos que o mundo conhece e identifica como elementos da musicalidade brasileira e suas ramificações tupiniquins, tupinambás, xavantes, bantas, iorubás, sudanesas, ibéricas, árabes, asiáticas.
Os elementos da culinária brasileira também têm marcas nítidas dessa mistura étnica que ocorre no cotidiano da brasilândia. A feijoada, por exemplo, sempre é mencionada equivocadamente nas escolas como contribuição africana à mesa do brasileiro. De fato, os feijões foram trazidos da África e, com eles, outros pratos em forma de caldos. Esquece-se, porém, que o arroz, que também compõe a feijoada, foi trazido do Oriente pelos portugueses e que a farofa é um prato que funde temperos e outros elementos opcionais à farinha, que é base da culinária indígena, fazendo da feijoada o prato mais famoso do Brasil no mundo porque é a cara desse país: miscigenado pelo tripé indígena, ibérico africano. Acrescentando as adjacências, a couve refogada e as laranjas dão um toque especial e, para quem gosta, a caipirinha completa o mosaico gastronômico.
Tive inesquecíveis aulas de geografia, que me ensinaram sobre clima, vegetação, relevo, hidrografia, população, produção de alimento, mas nunca houve uma amarração para dizer por que os churrascos gaúchos eram musicados pelos fandangos e por que essa manifestação do Sul tinha gaitas (concertinas ou sanfonas como conhecemos) e os fandangos da região de Sorocaba eram acompanhados de viola. Entender por que os gaúchos são os reis da picanha sempre foi fácil porque não foi difícil associar a produção bovina ao sul do país.
Já os mineiros foram muito cuidadosos em criar uma grife “de minas” ao associar o Estado às cachaças mais caras do mundo, aos distintos queijos que lá se produzem. Aliás, apropriaram-se de uma culinária caipira feita em São Paulo, Paraná, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins e Rio de Janeiro, que os restaurantes, hoje, estampam em banners como “comida mineira”.
Talvez porque Minas preserve uma ruralidade que São Paulo perdeu há décadas, desvinculando a culinária cotidiana do que se produz no campo, senão comeríamos rapadura com suco de laranja.
O estado de São Paulo, entretanto, agregou tantas outras culturas ao longo do século XX, que não é difícil encontrar pessoas as quais afirmam categoricamente que a capital paulista faz uma pizza melhor que a da Itália. É também notável que pipocam restaurantes japoneses em várias cidades, oferecendo o que há demais requintado na culinária nipônica. Vê-se que os elementos predominantes nas estufas de salgados das cantinas escolares são os quitutes árabes e que as crianças adoram hambúrgueres com fritas nos moldes americanos, acompanhados de coca-cola, sem dispensar os deliciosos refrigerantes caipiras, como a Itubaína de Rio das Pedras, o Guarany de Torrinha, o Dom de Ribeirão Preto, a Cotuba de Rio Preto. Os hambúrgueres, aliás, foram inventados pelos alemães de região de Hamburgo e chegaram ao Brasil na década de cinquenta.
Aos finais de semana, não há como negar que um elemento muito presente na mesa do brasileiro é o macarrão, inventado pelos orientais, molhado ao suco de tomate, inventado pelos italianos.
Quem quiser pode acrescentar pão francês com quase tudo, que fica bom.
Anualmente, muitas cidades organizam famosas Festas das Nações, e o elemento que indiscutivelmente leva multidões a esses eventos é a gastronomia, que se sobrepõe à música, às danças e, se tivesse, ao futebol, que perderia para as infinidades atrações gustativas que, na verdade, já estão quase diariamente na mesa tão fundida do brasileiro.
                                                                                            (Fabius)
(Feijoada: fusão de elementos num prato cheio de cores e sabores)

(Modelo gaúcho de servir churrasco)

(Das cantinas italianas de São Paulo às comunidades ítalo-caipiras: "macaronaaada")

(Comida caipira: apropriada como "comida mineira")






segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Submissão cultural


O acesso a informações e a produtos importados hoje é um fato que faz parte da realidade dos jovens brasileiros e da maioria dos países do mundo. O discurso da sociedade quando houve uma certa “democratização” dos meios digitais foi de que haveria interação cultural entre os povos, e isso tornaria o ser humano menos ignorante por entender diferenças culturais por ter acesso ao modus vivendi de países distantes. Acontece que não se buscam referências culturais da Venezuela ou da Guiana na internet. Não se procuram conhecimentos acerca do cotidiano angolano ou esloveno.
A internet é um instrumento de comunicação muito empregado no mundo todo sobretudo para estabelecer contato entre internautas, e isso é uma qualidade insuperável sobre outros meios, mas há um cuidado que se deve tomar quando se trata de uma fonte de pesquisa cultural.
Certa vez, eu voltava de Ribeirão Preto e parei num restaurante próximo a uma colônia de japoneses e descentes radicados ali há muitas décadas. Havia um jovem cabeludo dessa comunidade com uma camiseta preta estampando o nome de uma banda de rock. Não hesitei e, de cara, perguntei ao rapaz que instrumento ele tocava. Ele disse com decidida dicção: “GUITARRA”.
Perguntei que guitarra ele tinha, e ele respondeu possuir uma Ibanez. Então perguntei se ele gostava de Steve Vai, um endorser dessa marca, e ele emendou que também ouvia e tocava coisas de Joe Satriani, mestre de Vai e também anunciante dessa guitarra. Daí completamos esse assunto falando de amplificadores, equipamentos e timbres extraídos desse instrumento e do fácil acesso a informações sobre artistas e músicas que havia na internet.
Virei o rumo da conversa perguntando sobre as atividades culturais da colônia que se vinculavam às raízes nipônicas e sobre a relação que os jovens dali tinham com tais atividades. Ele estranhou minha pergunta e disse que não havia uma grande adesão espontânea dos jovens para participarem de Bon Odori e outros ritos. Falou que há uma boa parcela dos netos de japoneses que consideram “mico” aquilo tudo. Eu disse: “Que pena!”. Antes de me despedir, perguntei seu nome e ele disse também com boa entoação: “ISAQUE”, um bonito nome hebraico que chamou o filho de Abraão com Sara no Velho Testamento.
Saí dali pensando que aquele garoto tinha o perfil de uma boa parte da juventude brasileira. Descendente de imigrante e reconhece essa condição, mas não se sente mais vinculado às antigas tradições negando-as, assim como também se negam as raízes brasileiras quando se pensa em cultura.
Essa identidade cega com a cultura estadunidense, somada à negação da identidade cultural brasileira, pode comprometer toda uma geração de jovens, levando-os à total submissão cultural. É preciso reconhecer que não são mais japoneses, italianos, espanhóis ou árabes ortodoxos, mas que são jovens brasileiros e que precisam fortalecer suas bases culturais e mudar a cara do país com seus recursos. Sem dúvida, há muita coisa boa advinda dos Estados Unidos e de outros países, mas respirar só essa arte por meio da internet pode ser um risco.
(Fabius)


(Grandes tambores japoneses)

(Festa de Atibaia, cidade maravilhosa)

(Tambores do Bon Odori)



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Três é demais


Entre as diferentes possibilidades de um grupo musical, a formação compacta dos trios é, de fato, desafiadora. Os trios buscam, com recursos mínimos, o máximo de sua musicalidade, ao contrário dos grandes agrupamentos de músicos, cujo exemplo máximo de sofisticação são as orquestras, nas quais atuam muitos instrumentistas em diferentes linhas harmônicas, melódicas e percussivas.
 Com uma linguagem simples, os pontos fortes dessa formação são a harmonia e o entrosamento existentes entre os integrantes, o que torna possível, muitas vezes, transformar o vácuo sonoro num recurso musical a ser valorizado e explorado.
A partir do início do século XX, quando o Trio Aurora abandonou o antigo rótulo de “Terceto” ao gravar o primeiro disco com a designação de “Trio”, muitos outros passaram a enriquecer a discoteca brasileira.
Nas últimas décadas, um exemplo de trio com grande impacto no contexto internacional é o grupo “The Police” que, na contramão de músicos e grupos de rock que surgiam nas décadas de 70 e 80 buscando técnicas virtuosas para tocar suas canções, passou a influenciar bandas no mundo todo ao apostar na simplicidade.
Esse formato continua a ser redescoberto e explorado e, no Brasil, vários deles se destacam entre diferentes origens e estilos, como o trio Curupira (jazz), o trio Tamoyo (etnomúsica brasileira), o Meretrio (jazz), o Chorando a Tempo (choro) e o internacional Krisium, que faz um death metal de arrepiar.
Ter espaço para duos, trios, quartetos, quintetos até as orquestras, passando por gêneros diferentes, é de extrema importância para o exercício da democracia musical em nosso país.
(Fabius)

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Experiência antropológica com o cururu paulista


Já faz algum tempo, estendendo-se num final de semana inteiro, ocorreu um grande evento na cidade de Votorantim, município vizinho de Sorocaba: a “IV Violeira”.
 Antigo distrito da capital regional, emancipou-se na década de sessenta e, hoje, independente, mantém tradições culturais extintas da antiga Sorocaba e que estiveram presentes na “IV Violeira”.
Foram reunidos, entre muitas atrações, os maiores violeiros do país. Tocaram na festa Ivan Vilela, Levi Ramiro, Julio Santin, Rainer Brito, Zeca Collares, Pereira da Viola, Julio Gulin, Milton Araújo e Trio Tamoyo para plateias militantes.
Em todos os dias do evento, ocorreram oficinas culturais, por meio das quais um público aprendeu passos de catira com membros do grupo Os Favoritos da Catira, além de oficinas sobre etnomúsica brasileira e identidade cultural, culinária caipira e muitas mesas redondas em que se sentaram acadêmicos, músicos e artistas do cinema com membros do fandango de Cananeia para discutirem “A contemporaneidade caipira”.
Tudo foi muito impressionante para quem esteve lá, mas não há como negar o choque de presenciar um desafio de cururu com os monstros da poesia caipira daquela região. Enfrentaram-se no repente paulista Cido Garoto, Dito Carrara e Andinho. Os dois primeiros têm a feição do que se espera, hoje, de um canturião do cururu. São maiores de cinqüenta anos e carregam expressões denunciadoras de que essa modalidade de repente paulista já viveu décadas melhores de sucesso. Andinho, porém, surpreende qualquer antropólogo que estuda as manifestações caipiras sob a perspectiva de que vivem uma decadência rumo à extinção. Esse repentista é jovem, tem expressivas tatuagens nos dois braços e um piercing de argola no nariz. Quando abriu a boca para cantar na tarde do sábado do evento, mandou petardos de esquartejar seus desafiados mais experientes. Entre os MCs do cururu, destacava-se Carlos Caetano, violeiro que os acompanha na maioria dos desafios de travas.
O denso público reconhecia como familiares os elementos presentes naquele embate de trovas: não só os cururueiros e seus músicos acompanhantes, mas também a feira de mulas, muito usadas nas antigas tropas de Sorocaba, as costelas assadas em fogo de chão na queima do alho e todas as duplas caipiras que aguardavam com alegria o momento de apresentação das “pratas da casa”.
Qualquer alheio a essa cultura diria, certamente, que seria uma interessante experiência antropológica participar de uma festa que mantém uma força assustadora no exercício da cultura popular paulista caipira numa região metropolitana a quarenta minutos da capital de São Paulo.
Esses elementos todos, reunidos nessa festa, evidenciam claramente origens e  rumos dos trilhos de nossa cultura. 
(Fabius)
Andinho, canturião do Cururu de Sorocaba

Rogério Gulin na Violeira de Votorantim

Tropa de mulas rumo à feira